sábado, 31 de março de 2018

Capitão Fantástico e os nossos dias

    Capitão Fantástico não é uma obra - prima do cinema e nem muito menos, um filme marcante dentro da história do mesmo, pela natureza de suas especificidades técnicas ou de sua produção; sim, ele realmente não é nada disso, mas por qual motivo resolvi falar brevemente sobre a importância desse filme diante das condições presentes em nossos dias brasileiros? Aliás, dias profundamente decadentes. Resolvi falar, pois esse simples e tocante filme, relegado de modo real pela academia americana no início de 2017, consegue nos remeter a um conjunto de reflexões distintas e aqui, de forma didática e objetiva, decidi pensar em algumas dessas questões:
    1) O que é o sentido em existir de forma autônoma no mundo? Que tipo de mundo resolvemos atribuir ao que surge aos nossos lhos  e qual é o tipo de capacidade de dar significado, que nós, como agentes significantes, podemos realizar? O filme nos ensina que é possível ir além da reprodução de ideias prontas, mesmo que elas sejam diferentes, pois não importa que simplesmente pensemos de modos opostos, mas que de fato, sejamos capazes de pensar e de afirmar que somos vivos, pois em tudo e diante de tudo, decidimos definir de modo próprio o que cada coisa, fato e experiência, tem a nos oferecer. Em um país esfacelado pela miséria e pela pobreza dualista, dotada de profunda agressividade e incapacidade de ouvir, seria maravilhoso que cada um de nós, pudéssemos revisitar a natureza de nossas crenças e aperfeiçoar a materialidade de nossas lutas, principalmente diante das contradições que muitas vezes nossas próprias esperanças em pessoas, líderes e causas, possam demonstrar.
    2) Podemos pensar como somos sujeitos autenticamente capazes de dialogar de forma aberta e natural, com quem quer seja? A cena clássica do jantar de família, é uma profunda descrição habermasiana do sentido ético do diálogo, do poder específico da fala, que é vitalizado, pela verdadeira atitude auditiva. De um modo histórico e permanente, somos presos às amarras ontológicas da suposta ordem moral, aonde a imensa maioria nem sabe de fato o sentido do termo moral e regidos pela ordenação cristã, branca e eurocentrista, aprendemos a criminalizar certas condutas e negar a naturalidade das especificidades humanas, assim como das nossas enormes diferenças. O filme nos conduz à transgressão da verdade, mas não da verdade conceitual, ele fala da verdade de sentir e ser humano, de perceber e aprender na humanidade do outro. Diante de um país, envolto na sombra do fascismo e da repressão cega e contínua, uma arma de base consistente é a crença e a prática do diálogo e da percepção que somos humanos e que nossas malditas convenções e formas de controle e domínio do existir de alguém, só dão validade à doença de um país embrutecido e frio, obscuro e decadente.
    3) Por fim, essa película nos lembra que há uma missão árdua e indispensável, que é a de saber enfrentar a lógica de um sistema que por si só, é a morte e a eternidade do morrer, em tudo que é efetivamente humano. A lógica Capitalista e em particular, o protótipo material do Neoliberalismo, nos ensina a nos conformar com a ideia de que estamos dispersos em nossos intuitos individuais e que isso é o mundo que precisamos aceitar e prolongar; nesse mundo o conhecimento é um objeto para funções pessoais, o corpo é um objeto que deve atender anseios específicos e que não pode ser outra coisa, se não os padrões delimitados pela propaganda do existir comercial; nesse mundo cuidamos do corpo, por questões estéticas e para nos mostrar de modo belo e atraente nas redes sociais; nesse mundo nossa relação de cuidado com a natureza, é só o resultado de uma contingência, depois do condição caótica que nós mesmos desenvolvemos; nesse mundo precisamos ser amigos e conhecedores do poder das novas tecnologias e nesse mundo, todo o nosso comportamento deve ser quantificável e preso à jaula do coerente e do aceitável.
     Como então nos opor a isso? Na conclusão final desse filme, vemos um homem lidando com suas contradições, mas sendo conduzido por aqueles que ensinou (filhos), a resistir e resistir com a consciência que somente o equilíbrio é capaz de nos oferecer. Ele aprendeu que o mundo real do sistema capitalista existe como tal e que a resistência deve se oferecer diante dessa própria realidade, com sabedoria e persistência, com sensibilidade e crença. Nos dias que vivemos no Brasil, devemos usar o espelho diário de nossas contradições e perceber o nível e a possibilidade do alcance de nossas vozes e nossas atitudes; todas as malditas condições expostas no parágrafo acima, que sintetizam o Neoliberalismo e a existência de um país reacionário, violento e dominado pelo consumismo, pelo poder da imagem e da falta de percepção democrática e por uma profunda inconsciência humana e crítica, só serão continuamente destronados, se crermos no poder fantástico de nossas pequenas ações coletivas, que firmadas em ideias consistentes, seriam capazes de nos fazer prosseguir, pois o que seria a jornada humana, se não a luta para que permanentemente sejamos mais humanos, através da beleza da vida, que é como tal, a beleza, de sermos juntos e de definirmos conscientemente o país que  juntos e somente juntos, podemos nos tornar, que juntos e somente juntos, podemos operar. 
    O fato é que com leveza e maior bom humor, como a vida tem me ensinado desde o ano passado, porém com firmeza insolúvel, podemos ser, cada um de nós, o Capitão fantástico de si mesmos e em dados momentos, de alguns outros e que um outro ou  alguns outros, também possam fantasticamente nos capitanear, no rumo da Democracia e da consciente vontade popular, pois como nos ensina o filme, o poder é do povo e para o povo...

sábado, 24 de março de 2018

Breve reflexão sobre o ódio

    O ódio é um elemento persistente diante do poder vigoroso da liberdade; ele faz da nossa capacidade de agregação, um tolo propósito de conto de fadas e erradica nossa aspiração de ver a humanidade do outro, tal como ela é. Nesses últimos anos, tenho investido tempo para tentar compreender a natureza desse sentimento e a potência de sua materialidade. O fato é que sempre me assusto com a obscuridade expansiva do ódio, seja ele, em todas as suas formas possíveis, mas mesmo assim, preciso e devo compreender sua forma de existência contínua. 
    Sim, a compreensão é uma atividade necessária e é de fato, base elementar desse tipo de enfrentamento, pois ninguém será capaz de se opor a um mal, se não for capaz de perceber o caminho de sua prática, para  assim reverter o seu poder destrutivo e também mergulhar na essência de sua existência, dentro de cada coração e mente humanas. É evidente que o Neoliberalismo tem um poder próprio de segregar, assim como os juízos moralizantes tem de reduzir o homem a um objeto que possa ser dominado e domesticado; ou seja, entre a segregação e o domínio, há um espaço eficaz para a produção da morte, que não é necessariamente física, mas da capacidade de sentir, ouvir e pensar a necessidade do outro.
      Muitas vezes falamos do ódio na sua extremidade fascista e assim nos ausentamos de pensar e refletir sobre nossas próprias responsabilidades, pois mesmo que repudiemos o universo de violência e da segregação que nos envolve, há uma presença sutil e persistente de uma forma própria de potencialização do mesmo, praticada por nós próprios, mesmo sem pensarmos diretamente nisso. Nessa análise, dois elementos se apresentam: O primeiro diz respeito ao modo como as demandas específicas, se perdem diante da busca pela transformação coletiva e a segunda é a que opõe teoria e prática, no ensejo real de nossas vidas concretas. Em relação ao primeiro caso, é inegável que a luta de cada mulher, mulher negra, homem negro e homossexual, são profundamente relevantes e irrevogáveis, mas a questão é sobre o quanto que em alguns momentos, o exercício delas, esquece a relação direta e agregativa entre as questões específicas e a necessidades reais de uma verdadeira Democracia e o quanto que há de diálogo entre essas causas com a pluralidade das consciências e das liberdades que se fazem presentes dentro da sociedade. Em alguns momentos, as falas e as práticas que se revelam por elas, parecem refletir uma sutil violência ao que toda forma de oposição e pensamento distinto podem oferecer. No fundo, formar a consciência para a Democracia, transcende e transita por essas questões, mas não se resume ao atomismo de suas existências. Em alguns momentos, permitimos que fagulhas do ódio se expandam, em nome da luta pelo reconhecimento e pela igualdade e diante disso surge um profundo desafio face a ameaça de que estejamos cada vez mais dispersos e distantes, por consequência de um sistema que em sua causa de existir, já nos força desde sempre, há crer na divisão e no isolamento.
      Em relação ao segundo elemento, podemos repensar no que representa os nossos discursos e o que apresenta as nossas práticas; ter ódio do outro, não produz nada de humanamente concreto e nada de poder coletivo; a vida é feita de fluxos e escolhas e na verdade, não é o repúdio ao ódio em si, que nos separa do ambiente que envolve esse sentimento. Talvez o que alteraria essa lógica seria o amor e seu benefício verdadeiro. Por instinto amamos aos nossos e aqueles que nos cercam; por escolha podemos amar o desconhecido e aprender com aquilo e aquele que não nos interessava. É verdade que não há um obrigação em amar, mas sinceramente creio que confundimos o que essa palavra tem a nos oferecer, por acharmos que isso necessite de um envolvimento profundo com alguém, quando na verdade, só deveria envolver nossa disposição de entender e ouvir. O amor seria assim, algo simples, mas inegavelmente inquietante, já que nos obrigaria a ir muito além de nós mesmos.
       Por fim, cabe pensar que em nome da esperança, podemos desmistificar o exercício dessa palavra e desnaturalizar o poder do próprio ódio. A realidade é que uma vida inteira não seria o suficiente para entender essa lógica que se manifesta na condição humana, mas também é verdade que todas as nossas vidas podem servir para fazer o melhor que pudermos, dentro dos nossos limites e alcances, em nome da liberdade, das necessidades, da dor e da beleza que habita na singularidade do rosto do outro, do corpo do outro e da história que esse outro, junto a mim, pode construir...