sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A comunhão é o início


                                      
        Nunca fora alguém dado a muitas amizades e processos de interação social; no fundo, sempre apreciei a dimensão privada da reclusão individual, todavia algo pulsava no meu íntimo, desde quando muito novo, sendo esse algo, o prazer intocável e indescritível, de uma boa conversa, de uma simples e suave troca de possibilidades, de percepções, de afetamentos, de conjunturas culturais, do existir individual, lançado em seu caráter de completude, na manifestação das interações coletivas. A ideia de "algo coletivo", sempre me tocou, quando esse deslizar interacionista, era baseado no vigor do contato argumentativo, da transfusão dos sons, através do ouvir e do falar. Diante da condição inequívoca do processo de produção de compreensões, construí meu imaginário adolescente, desde as simples conversas, com meus sinceiros amigos, no aconchego do meu quarto, assim como nas mais distantes condições espaciais, aonde por muitas horas, em tantas vezes, o prazer de se pensar de modo conjunto, obscurecia a necessidade de se afirmar individualmente.
     Já se foram vinte e poucos anos, desde que tais memórias e momentos de saudabilidade existencial, a mim se deram e a cada dia mais, me impacto com o poder dessa condição memorável. Se formos ao âmago da ideia sobre temporalidade, diretamente desenvolvida por Marcel Proust, perceberemos que as mais diferentes sensações, resgatam a continuidade da permanência interior, aonde cada lembrança, se manifesta continuamente, em sons, cheiros, lugares e rostos, permitindo assim com que o tempo não seja nada mais e nada menos, do que um entrelaçamento permanente de fluxos fenomenológicos, que permanecem em nós, negando a ideia de passado e futuro e afirmando o presente dessas marcas interiores, que transitam incontrolavelmente, afirmando o que somos, naquilo foi e no  que será. Enfim, a mente designa o sentido do tempo, assim como o sentido de se ter prazer em viver esse fluxo. Partindo dessa condição, me sinto cada vez mais sozinho, em um mundo cheio de interações promovidas pela tecnologia.
      De acordo com Karl Jaspers, o racional e o plural, seriam dizimados continuamente pela unicidade tecnológica da interação cultural produzida pelo avanço dos meios de comunicação. Há que se entender que sua crítica pairou sobre o modo como a unicidade dissolveria a identidade individual, elemento necessário e irrevogável, quando o assunto em questão, é a construção de uma sociedade estabelecida pelo traçado da diversidade. Assim o sendo, minha crise existencial que se expande e se fortalece diariamente, está relacionada ao modo como a previsão de Jaspers, parece cada vez mais inegável. Essa depressão profunda que abate minha consciência, advém do fato de que quando pensamos no Brasil, há um problema ainda mais profundo diante desse tsunami de informações e de transmissões de hábitos que habitam as redes sociais, tanto no modo de pensar, como no modo de se manifestar ao mundo, Falo isso, pois no nosso caso, se torna um crime ainda maior, negar que a única forma de se gerar uma " Nação" é exatamente por meio ao "culto" inesgotável do "diverso", do "diferente", daquilo que não seja o eu, mas que seja parte do todo, aonde estou.
      Resgatando Darcy Ribeiro, um dos maiores defensores da nossa brasilidade e que teve como epicentro de sua vida teórica e prática, o trânsito na questão sintomática da identidade de nossa diversidade, me faço a pergunta: Como ele veria a insanidade religiosa, moralista e conservadora dos nossos dias, aonde a doutrinação de um padrão social e comportamental é discurso operante, aonde o culto à uniformidade sexual, é ordem imutável, ordem capaz de designar o futuro metafísico de uma alma, seja qual for? Quando se ataca a diversidade sexual, se afronta a liberdade existencial da alma e isso é um crime imperdoável, já que extrapola a dimensão humana, para afirmar o racional e o correto como anterior ao que é humano. Ademais a essa questão, o que ele diria, se ao ser despertado de seu sono físico, soubesse que uma tal Câmara dos Deputados, atendendo aos interesses que afrontam ao diverso e à nossa história indígena, escolheu por legalmente permitir a extensão do avanço senhorial, sobre as propriedades constitucionalmente a eles herdadas?
      Como lidar com pessoas, que costumeiramente usam de eufemismos e metáforas esdrúxulas, para ocultarem a repulsa que sentem diante da cor "preta"? Cor essa que se apresenta a nós, como alternativa de amadurecimento de nossa identidade, por representar em si mesmo, a possibilidade da oposição lógica ao que é racional, no sentido europeu, ao que é civilizado, no sentido moral - cristão. A cor preta, além de linda e vigorosa, é o chamado à nossa consciência sobre a divina multiplicidade de nossa estrutura genética e cognitiva. Seriam tantos elementos, para se pensar no motivo de se mergulhar em um profunda solidão existencial, pois não é uma questão da escolha pelo pessimismo, é uma questão de como não consigo ultrapassa-lo. Para ultrapassar algo imposto com vigor, não se faz necessário impor ideias diferentes, na verdade, se faz necessário destituir o imperativo da imposição, seja ele qual for. No fundo, essas palavras são somente confissões lançadas em uma Sexta à noite, dia sugestivo para se sentar com amigos e pensar o nós, nossa sociedade e o mundo que deixaremos ser construído após nós mesmos. Muitas vezes me deparo como o pensamento sobre o que seremos, quando aqui já não estivermos e por isso diante dessa imagem mental, ainda busco escrever, não para doutrinar, não para conceituar ou definir, mas para resgatar a fluidez dos sorrisos e das vozes, que muitas vezes envolvidas em cantos conduzidos por um violão, diante de corações sinceiros, se entrelaçavam no real sentido da existência, que é a comunhão.
       Não precisamos de muitas coisas para existir de fato, só precisamos de uma voz e suas ideias e de um ouvido e sua compreensão; Precisamos do fluxo dessas trocas, precisamos resgatar o início, não um início dirigido por normas intelectivas previamente dadas à nossa convivência social. Precisamos do início mesmo, aquele início de uma amizade, aonde um novo rosto nos impulsiona ao mistério de uma nova relação, de novas experiências. Enfim, antes de falarmos que iremos mudar um país, pela via da normatividade política da atualidade, poderíamos deixar com que o início se manifestasse, mas que fosse o início mesmo, aonde o mais importante seja conviver, ouvir, discursar, respeitar e se expandir. Eu ainda acredito e nessa noite, boas memórias salvaram meu coração.

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Platão, Heráclito e a quimera do que somos.


                                           Platão, Heráclito e quimera do que somos.

      Quando me deparei pela primeira vez com Platão, me mantive conciso nas propostas cognitivas de meus professores, que tomados pela afirmativa permanente de sua validade e intocabilidade, faziam do mesmo, uma figura de conteúdo filosófico irrefutável e unicamente abrangente. O emergir na literatura de figuras como Niestzsche, Popper e Foucault, obrigatoriamente me conduziu à uma dimensão desvinculada da normatividade racional, que se propõe a distinguir o mundo real do mundo ideal, todavia, a caótica simbiose de propostas nadificantes e nadificadoras, que inundam as redes sociais, me levaram a tentar redefinir o que de fato é mundo real e o que não é categoricamente real.
     As correntes filosóficas tendem de modo pormenorizado, em suas distintas particularidades, a tratar a questão do real, a partir das "perspectivas reais", do real pensado, do real dado ou mesmo do real projetado e assim o sendo, elas variam discursivamente diante de questões ideais, dialéticas, experimentais - científicas e existenciais. Em suma, as propostas discursivas são decorrentes da fluidez do tempo presente, mesmo que não seja o presente, o presente em si, já que também, o tempo seria tão somente um conjunto de sucessões, sendo o real, a nulidade de uma rigidez conceitual, que demonstra a força inexorável do conceito de mutabilidade e variabilidade desenvolvido por Heráclito. O que podemos definir, é que o indefinível, é o definível imposto a muitos dentro da sociedade e da opinião pública brasileira.
     Pois bem, é diante da questão da imposição do definível, que beiramos nos dias atuais, uma insanidade quase irreversível sobre grupos que não conseguem distinguir o real de uma projeção do que seja real. Platão afirmou com todas as suas forças, que o real não era o real com o qual nos acostumamos, pois esse real da cadeira onde sento e da rua aonde ando, só seria uma cópia defeituosa ao extremo, da real ideia desses mesmos fenômenos; Partindo do pressuposto platônico, não há real, no real, que imaginamos ser real. Usando a lógica de seu pensamento, poderíamos pensar sobre o que há de real, na realidade do embate político brasileiro dos nossos dias e o que há de ideal nas construções teóricas das redes sociais.
      Pensemos assim: O Brasil, é o real dado, diante do ideal ocultado e assim o sendo, o Brasil, é a repetição fenomênica, de várias distorções históricas de um ideal negado, negado por distorções de nossa vã rotina, que se deixa consumir pelos contundentes e enfáticos discursos midiáticos, assim como pela propagação de uma ideia de apelo de massa, dentro das redes sociais. A nossa realidade seria assim, uma propagação das distorções, que em regra, são oriundas de um conjunto de negações afirmadas dialeticamente por aqueles que entendem que a relatividade do poder discursivo, é força operante nas mentes dominadas pelas aparências. Mas de fato, o que nos estariam negando, através dessas distorções discursivas? Pensando nisso, elencarei seis possíveis negações, a nós impostas:
  1) A negação do pertencimento, pois ultrajados diante de uma bipolaridade rasa, mas incrivelmente abrangente, caminhamos para um processo de afastamento corrente diante do outro; Conceitos histórico de classe, precariamente aplicados, anulam a humanidade de nossas diferenças e nos impedem de viver a verdadeira dialética do debate comum, seja ele nas instâncias de nossos relacionamentos afetivos, assim como nas instâncias de nossos convívios sociais. Ou seja, abominamos a diferença no pensar e enfatizamos a prevalência em atacar, denegrir e dissolver, tudo que seja categoricamente uma outra forma de pensar.
 2) A negação de um sistema de ensino para a vida, para a coletividade, para a cidadania; De fato, em todos os níveis do nosso ensino, o modelo que enfatiza a competição e a dissociação entre o que é o mundo transitado por um e pelo outro, se manifestam com força voraz; A escola ou mesmo as universidades, são espaços de negação do diálogo, da afirmação da diversidade, da construção de teorias e ações efetivamente transformadoras do real. O ensino que projeta o eu para si, é a afirmação da morte do "nós", já que ele deveria ser o caminho de reflexão permanente do que queremos e do que podemos para o aperfeiçoamento do "nós".
3) A negação de nossa própria história de reclusão de classes; muitas vezes penso como é contraditório, alguém que um dia viu seus pais e avós vivendo tremendas dificuldades e que hoje tem acesso ao consumo, educação e moradia, ser participante de um discurso contrário à manutenção de uma política de cunho social, que já retirou mais de 22 milhões de pessoas da miséria. Como alguém que sabe o significado da pobreza, pode ser contrário às políticas  que retiram pessoas da condição de miserabilidade? 
4) A negação da transformação do sistema político, não pelas figuras ou entidades partidárias, mas sim por uma nova configuração de sua própria estrutura. já que existem normas validantes a serem percebidas dentro do ambiente político, seja ele, teórico e prático, em nosso país e assim o sendo, é mais do que necessário, que nos obstaculizemos à manutenção de uma ordem, que agride o nascimento da multiplicidade, já que supostos campos lógicos de terminação política, ocultam o estratagema da promiscuidade entre os poderes existentes, assim como a corrosão do bem comum, por força da terminação nervosa, oriunda das relações finalísticas entre o campo da atuação pública e os interesses do grande capital, dos conglomerados nacionais e internacionais e dos perpetuadores do monopólio da concessão e da exploração dos serviços e do dinheiro público, por advento das relações contratuais e de influência de poder, resultantes do processo pré -partidário.
5) A negação de uma forma autônoma do existir, por meio da apropriação permanente de nossas mentes e práticas de consumo, aplicadas através do agir imperialista e colonizador. Uma das causas de nossa falência coletiva, é a incapacidade de seremos atuantes na luta pela quebra dos grilhões da prática e do pensamento monopolista das grandes potências mundias. A incapacidade de compreender a nossa história pela via da nossa própria leitura, daquilo que é realmente pertinente ao existir latino e brasileiro, especificamente nos expelem do caos ao caos, já que não sabendo quem somos, somos o outro "somos", que afirma nesse "somos", sua necessidade de corrosão de nossa própria leitura espacial e histórica, já que desprovidos da autonomia, continuamos acorrentados pela liberdade de um idealização exterior, que diariamente distorce nossa compreensão sobre as mazelas que nos afetam.
6) A negação da diversidade de gênero, cultura e cor, que é sutilmente afirmada, pelo jogo da moral infundada, na chamada "racionalidade social", que nega a pluralidade da escolha, mas que diz o contrário, afirmando a superioridade de uma cor e de seu mérito existencial; assim se assume o caráter difusor da homogeneidade comportamental, quando um parlamento conservador e arbitrário, uma mídia pretensamente libertária e o comando do imperativo divino, são convocados para denegrir a leveza da variabilidade das escolhas e do fluir humano. Essa negação, em última instância, afirma categoricamente, que antes do enfadonho embate sobre a "corrupção pública", há a corrupção violenta e degenerativa de todos os diversos atributos da maravilhosa falibilidade e variabilidade do que é humano.
       Em suma, não sou um efetivo e afetivo dependente da idealidade platônica, pois não creio no real ideal, mas cabe a qualquer mente sadia, entender que há distorções sobre a natureza do real, que somente a capacidade reflexiva mútua, poderá nos levar a vencer. Venceremos, não por causa de uma conquista da idealidade, mas sim por derrubarmos a violência das distorções imperativas, que nos dizem que devemos repetir o mais do mesmo, esquecendo que precisamos do mais do novo, novo esse, que não será o ideal dado, mas sim a continuidade de um fluxo permanente do nosso aperfeiçoamento. Sigamos o curso das águas e lembremos do saudoso Heráclito de Éfeso.

Bruno Leonardo - Professor e pesquisador