terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Ele ainda está aqui




Lá estava ele, ele passou perto de mim e eu vi sua dor

Lá estava ele, ele até sorriu, ele exalou algo seu

Lá estava ele, solto, preso, vivo, morto, cheio de pavor e em puro ardor

Lá estava ele, ali mesmo, bem perto, mais tão longe de receber o amor que não se deu


Assim foram seus passos, passos soltos em direção ao desperdício do dia

Dia frio, dia seu, dia outro, dia dele, dia intenso, de castigo e fome

E a fome e a fome, veio a ele? ninguém o viu, ninguém lhe percebia

Sobre os montes de apelos e a nudez de um nada, a violência mostra seu nome


E a fome e a fome, está com ele? não foi ontem, não é o agora, é só um ele vazio

Sem pensar no que penso, sem se preocupar com os dilemas do dia, ele continua exalando a dor

Se de fora, se de perto, seja só ou somente tão só em si, ele continua remido por um sopro vadio

Quando a noite vem, eu não o vejo e de fato, nunca sinto o seu clamor


Amanhã acordarei e vou dilacerar minhas angústias tão efêmeras a ele e ele ainda será um ele?

Talvez sim, talvez não, talvez nada, talvez um eu e talvez um eu, ainda exista por aí

E perambule entre o vácuo de ser uma singularidade e o sonho de ser visto, sentido e amado

O que é o amor? verbo ou conceito? e a fome? o que ela é? o que ela produz?


Me lembro bem dos dias em que ele falava comigo e eu conhecia sua voz

Em algum tempo, tempo fugaz, sei que canções o recitavam e o dilaceravam

Entre benévolas mensagens de um ano bom, de um novo ano

Ele continua sendo memória desprezível, memória desgastada


1998, esse era o ano, o ano dele, o ano de sonhos, o ano arredio

E os seus pares, cegados seguiam, alienados consentiam

E o que fizeram conosco? o que fizeram com nossos sonhos, cânticos e anseios?

Fizeram o quê de nós? E mesmo assim, ele ainda acredita


Sim, chegaremos aos vinte anos do ele, do eu e do nós

E estamos soltos, perdidos de modo atômico, rindo com um concreto consentimento

E esse é o ele, o ele tomado pela voracidade de poucos, o ele dilacerado em sua infinita miséria

Cantemos por ele, pois quem sabe um dia, ele ainda amará, comerá, sorrirá e sentirá


Sim, ele sentirá, sentirá na injunção e na agregação, na associação e na afetividade vivaz

Naquela afetividade que exige o interesse por um olhar, exige a solidariedade de um sorriso sincero

E nele é que a solidão sonora é destroçada pela harmonia de um suave diálogo

Diálogo atemporal, diálogo de crença, diálogo indomável e contínuo


Pois no fundo, o ele não é um ele, o ele é um você, um você faminto, um você aflito

Um você que cansa, um você que ainda clama e que vê o ele, em cada luta e em cada fragmento

Fragmentos do corpo, da cor, da mente, do sexo, do outro e da beleza que há no diferente

Fragmentos infindáveis em busca de um pertencimento necessário


A música ainda toca por aqui e eu sei que pertenço a ele

E você, ainda crê nele?